O POEMA

O POEMA “The Waste Land” é composto de cinco partes, apresentando, em sua versão original, um número total de 433 versos. A eles, Eliot acrescentou meia centena de notas que associam seus versos a citações de 31 fontes e autores, alguns referidos mais de uma vez (como Dante, por exemplo). Há também muitas citações não-atribuídas, conforme afirmam os estudiosos do poema. Essas cinco partes,de tamanho desigual, são assim intituladas (ao lado, consta o número de versos de cada uma): I. O Enterro dos Mortos (76); II. Uma Partida de Xadrez (96); III. O Sermão do Fogo (139); IV. Morte pela Água (10); V. O Que Disse o Trovão (112). A seguir, apresentam-se comentários relativos a cada uma dessas partes, ao seu conteúdo e forma. No final, apresento a minha tradução do poema. Levei em conta aqui, naturalmente, as soluções apresentadas pelos diversos tradutores a que tive acesso, citados anteriormente. Mas o critério adotado foi sempre a fidelidade aos versos originais, não que eu pense que essa seja a melhor maneira de traduzir poesia, mas para atender ao meu objetivo principal nesta empreitada, que foi o de saber o que realmente dizem os versos, para melhor desfrutá-los na versão original. Opção que, acredito, seja defendida por aqueles que pensam que a poesia é intraduzível... * Segundo Southam, o tema do poema “é a salvação da Terra Desolada, não como uma certeza mas como uma possibilidade”. O ano de sua publicação é 1922, quando o mundo vivia situação crítica, após a Primeira Guerra Mundial. Mas a Terra é assim qualificada “não pela devastação e derramamento de sangue” ocorridos na Guerra “e sim pela esterilidade espiritual e emocional do homem do Ocidente, pela decadência da nossa civilização”. Conforme esse autor, “Eliot desenvolve tal tema explorando padrões afins na natureza, no mito e na religião: o ciclo das estações, os antigos mitos da fertilidade do Egito, Índia e Grécia (o deus deve morrer e renascer para trazer fertilidade à terra e potência aos homens) e a vida, morte e ressurreição de Cristo” (12). Ainda de acordo com Southam, Eliot apoiou-se no relato que Jessie Weston fez a propósito do Rei Pescador, um personagem que aparece nos mitos de fertilidade. A terra de seu reino está assolada por uma maldição, o Rei está impotente e o povo infértil. A maldição só será levantada com a chegada de um estranho que fará ou responderá certas perguntas rituais. Eliot relaciona o mito do Rei Pescador à lenda do Graal. Esta é a taça usada por Cristo na Última Ceia. Nela, José de Arimateia recolheu o sangue do ferimento lateral de Cristo na cruz. Depois, ele a levou para a Inglaterra. A taça foi perdida, e a busca do Graal tornou-se uma imagem, usada por muitos escritores medievais, para a busca espiritual. Um Cavaleiro empenha-se nessa busca, que o leva à Capela Perigosa onde ele deverá formular certas questões sobre o Graal e uma outra relíquia sagrada, a Lança que feriu Cristo lateralmente. Isso feito, a situação difícil da terra e do povo será aliviada (13). Além de “From Ritual to Romance” (Do Ritual ao Romance), de Miss Jessie L. Weston, Eliot também se apoiou em “The Golden Bough” (O Ramo de Ouro), o estudo enciclopédico de James Frazer sobre os mitos primitivos, que estabeleceu uma linha de continuidade desde as origens desses mitos, através da religião organizada, até o pensamento científico moderno. Eliot apoiou-se particularmente nos dois volumes relativos às divindades Adônis, Atis e Osíris que tratam das cerimônias de vegetação, destinadas a assegurar a continuidade do ciclo das estações, em que a vida renasce no novo ano a partir do velho. Para Eliot, “The Golden Bough” pode ser lido como uma revelação daquela mente desaparecida da qual a nossa mente é um “continuum” (14). Conforme Traversi, “The Golden Bough” consiste em “um estudo dos primitivos ritos de regeneração, da reprodução, em muitas e diferentes sociedades humanas , da morte do inverno por meio do sacrifício ‘simbólico’ anual do rei-sacerdote a fim de assegurar para a sua sociedade a ‘ressurreição’ da vida na renovação da primavera. Esse é o princípio que Frazer viu refletido nas histórias de Osíris, Orfeu, Plutão e Perséfone, e nos Mistérios Gregos” (15). Traversi afirma que “From Ritual to Romance” é um estudo sobre a busca do Santo Graal, que relaciona seus supostos símbolos a sobrevivências no baralho de Tarot. Com relação ao poema de Eliot, são relevantes os símbolos nas cartas da taça, da lança, e outras, que Miss Weston associa à lenda do Graal e vê como símbolos sexuais ligados aos antigos ritos de fertilidade e possuindo significação fálica. Mais importante ainda (para o estudo do poema) é a lenda do Rei Pescador, cuja impotência está associada ao fracasso da fertilidade na terra que ele governa. “Essa lenda se relaciona ao uso no poema dos símbolos da água como um sinal de regeneração, e da pesca; lembramos, quanto a essa última, o uso, pelos primeiros cristãos, do Peixe, como símbolo do Cristo ressurrecto. Finalmente, o poema de Eliot extrai do livro de Miss Weston a ideia de que o incapacitado Rei Pescador pode recuperar a potência e sua vida plena por meio de um cavaleiro em peregrinação à Capela Perigosa, onde os símbolos do Graal estão supostamente escondidos. Essa ‘peregrinação’ é realizada, no livro de Miss Weston, para representar os processos de provação e iniciação dos mistérios gregos que, por sua vez, são vistos como referindo-se a outros e mais antigos ritos” (16). Para Kaplan, o poema, reduzido à sua forma mais simples, expressa a experiência de alguém que é levado a consultar uma cartomante, trata da sorte que ela lhe prevê e do que acontece ao consulente na sequência. Isso tudo é complicado e universalizado ao ser inserido no âmbito da lenda do Rei Pescador (17). Segundo Kaplan, essa é uma antiga lenda relacionada ao ciclo da vegetação que explica as estações do ano. Foi estudada, em sua relação com a lenda do Santo Graal, por Jessie L. Weston e por Sir James Fraser, nas duas obras de antropologia já citadas. Fraser investigou os mitos de vegetação nos tempos antigos e mostrou que no Egito e Grécia as estações do ano eram relacionadas à morte e ressurreição de um deus. O deus morria no inverno com a morte da vegetação e renascia na primavera com o renascimento desta. Tudo isso implicava a realização de rituais religiosos, o que já ocorria antes, entre povos mais primitivos. Fraser constata vestígios desses rituais antigos no Cristianismo, em que a morte e ressurreição de Cristo ocupa papel central. Jessie L. Weston, por sua vez, mostrou que no âmbito da lenda medieval inglesa do Santo Graal o cavaleiro que vai em procura do graal (o cálice ou a taça que Cristo teria usado na Última Ceia) constata uma terra sem vida e arruinada (barren and waste). Ele descobre que a condição dessa terra está magicamente associada à condição física do rei. O cavaleiro, para curar o rei, deve passar por uma provação. Ao superá-la, o rei se cura e a terra volta a germinar, ganhando vida (18). Esse é o Rei Pescador, assim chamado por se dedicar à pesca enquanto sua terra permanecia arruinada, improdutiva, inútil. Ele é personagem das lendas do rei Arthur e do Santo Graal. O cavaleiro das diversas versões da lenda é geralmente Percival ou Galahad (19). De acordo com Serpieri, Eliot dá mais ênfase à sua dívida para com a obra de Weston. Os estudos de Frazer foram um reconhecimento dos antigos ritos de fertilidade na bacia mediterrânea pré-cristã enquanto o trabalho de Weston constituiu uma ponte entre o mundo pré-cristão e o mundo cristão medieval. Eliot, por sua vez, concentrou-se na cena contemporânea (20). Muitas pessoas falam ao longo do poema, não apenas o poeta. Ou melhor, o poeta fala usando a sua e outras vozes. Constata-se em “A Terra Desolada” uma inovação formal importante: a quebra da “unidade de voz” no poema, vale dizer, não há um só personagem que fala na primeira pessoa, mas vários, masculinos ou femininos, sem que sejam assinaladas as mudanças de protagonista. O que importa aqui é o ser humano em geral, independente do gênero, ou de classe social. Eliot, com sua visão de mundo filosoficamente idealista, situa-se acima das classes sociais.. Outra característica do poema é a frequência das citações, alusões, paródias etc. Quanto à questão das citações, diretas ou indiretas, é interessante levar em conta esta afirmação de Eliot em “To Criticize the Critic”. Ele diz aí que “tomou emprestado versos de Dante na tentativa de reproduzir, ou melhor despertar na mente do leitor a lembrança de alguma cena dantesca, e assim estabelecer uma relação entre o inferno medieval e a vida moderna” (21). A função das citações assim seria estabelecer uma conexão com a tradição literária, associando estados emocionais de certas obras notáveis a determinadas passagens do poema. Conforme Kaplan, o uso de citações, alusões e adaptações por Eliot envolve a percepção não só da condição passada do passado mas também da presença do passado no presente. A estrutura do tempo do poema pode ser a chave para a sua compreensão. O intrincado e complexo movimento dentro do tempo é alcançado pelo uso constante das citações, alusões, referências e adaptações. Há uma dissolução do tempo normal dentro do poema (só existe fora dele). E prossegue Kaplan: Santo Agostinho voltou-se para uma teoria filosófica do tempo baseada numa concepção da experiência instantânea. O que acontece, acontece agora. “Passado” significa a experiência da memória no presente; “futuro” significa a expectativa de algo futuro no presente. A teoria de Henri Bergson também desempenha um importante papel na concepção do tempo de Eliot. Para Bergson, o tempo científico busca eliminar a duração. Isso o levou a formular um conceito de tempo como um dado imediato da consciência aparente de um determinado ser humano. Eliot está preocupado com o tempo humano em que o passado e o presente coexistem num “continuum” do agora. Por fim, Kaplan afirma que um poema é um apelo aos sentidos assim como à inteligência lógica. Enquanto os apelos à inteligência lógica de “The Waste Land” são parafraseáveis, seus apelos aos sentidos são altamente subjetivos para cada indivíduo que os recebe (22). A característica formal mais evidente do poema é, pois, a justaposição de diversas passagens e situações, aparentemente desconexas, cujos versos se apóiam em muitas citações de autoria indicada ou não, em inglês ou outras línguas (as notas de Eliot ao poema indicam alguns dos autores citados). Os versos podem também parodiar versos alheios. Assim, as manifestações pessoais do autor são mediadas pelas reações dos poetas que o antecederam e também pelas referências míticas. Nesse sentido, ocupam no poema papel importante os personagens das cartas do baralho de Tarot. A montagem textual do poema (envolvendo citações e manifestações do “fluxo de consciência” do protagonista) guarda semelhança com a montagem cinematográfica, pelos cortes e justaposições abruptas de versos, e imagens, que expressam conteúdos semânticos distintos e reforçam o seu aspecto “visual”. Por outro lado, vários autores já assinalaram também a semelhança do poema com a composição musical, considerando a forma como “The Waste Land” foi montado e a sonoridade dos versos.

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