II. UMA PARTIDA DE XADREZ
II. Uma Partida de Xadrez ( A Game of Chess)
A parte II do poema apresenta, embora formalmente não separadas, duas situações bem distintas pela ambientação e diálogos, a primeira relativa a uma classe social superior (a burguesia) e a outra, inferior (o proletariado). Eliot, todavia, não está preocupado com as perspectivas peculiares de cada uma dessas classes. Sua preocupação está acima das classes, volta-se para aquilo que elas têm comum, ou seja, a condição humana.
As duas situações focalizadas apresentam relações amorosas desgastadas entre os cônjuges, indicando a frustração de sua vida em comum. Conforme a interpretação de Stephenson (93), o título da parte II- “Uma Partida de Xadrez” traz consigo a ideia de xeque-mate, de situação sem-saída, como o “beco dos ratos” (rat’s alley- v. 115) a que o marido do casal rico se refere. Essa seria uma situação que ocorre tanto na classe alta quanto na baixa, razão por que a menção ao jogo de xadrez cabe como título geral da parte II. De acordo com a visão de Madame Sosóstris, na parte I, as multidões caminham em círculo (v.56), situação equivalente ao “beco dos ratos” da Terra Desolada.
O título da parte II se justifica também porque o confronto entre os dois contendores no jogo de xadrez expressa simbolicamente o confronto cotidiano entre os cônjuges. Além disso, o jogo é uma forma de distração para a vida ociosa do casal da elite. Visa a atenuar a sua solidão a dois (jogam “esperando uma batida na porta”: /.../ waiting for a knock upon the door- v. 138), ou a falta de comunicação entre os membros do casal, demonstrada pelo diálogo entre eles. Por outro lado, quanto ao casal pobre, tal relação também é problemática. A solidão da mulher é física (diferentemente da mulher rica) pois decorre da convocação do marido para a guerra. Esse casal, temerariamente, não se importou em gerar muitos filhos, considerando a época em que vive. O casal rico não deve tê-los, pois não são mencionados nos versos.
A primeira situação se estende do verso inicial desta parte II (v.77) até o v.138. Desses sessenta e dois versos, os trinta primeiros contêm uma descrição muito pormenorizada, barroca, do “boudoir” e sala requintadas da residência de uma dama que se manifesta após essa descrição. Essa mulher-- “ela” (she- v. 77) – pode ser interpretada como Belladonna, referida antes, na parte I, v. 49 (94)
O verso inicial de tal descrição (que parodia uma passagem de “Antônio e Cleópatra”, de Shakespeare) refere-se à cadeira dela, comparada a “um trono polido” (a burnished throne- v.77) que reluzia no mármore, onde um espelho, com pedestais lavrados, duplicava as chamas de candelabros de sete velas, refletindo luz sobre uma mesa com estojos abertos das suas jóias, cujo brilho àquela se juntava, e frascos de perfumes. As longas chamas das velas lançavam fumaça no “teto em caixotões” da sala e animavam seus motivos decorativos. Acima da lareira, um quadro mostrava uma “cena silvestre” (sylvan scene- v.98), que nota de Eliot associa à cena vista por Satanás nas fronteiras do Éden, conforme o “Paraíso Perdido”, de Milton. Essa cena mostrava a metamorfose de Filomela, personagem mitológico vítima de estupro que se transformou em rouxinol. Havia ali também outros quadros (“cepos secos do tempo”: withered stumps of time- v.104), em que os retratados, de olhar fixo, impunham silêncio à sala fechada (/.../ hushing the room enclosed- v.106). Note-se que o candelabro de sete braços (o “menorá”) é um símbolo do judaísmo (95), sugerindo-se assim que o casal da classe alta é judeu.
Segue-se um diálogo que revela a personalidade sensível dessa dama e fornece indicações sobre o grau de desgaste em seu relacionamento com o interlocutor, supostamente seu marido. Trata-se de diálogo típico de marido e mulher, mais sugerido do que reproduzido realisticamente, haja vista as réplicas aéreas do “marido”, que não são necessariamente ditas, podem ser apenas pensadas (note-se o sarcasmo ou a ironia dos versos).
John Hayward, apud I. Junqueira (96), a título de comentário geral a essa parte II, constata aí “o contraste entre a vida dos grandes e a do povo numa terra estéril e destituída de significação. Na peça de Middleton, o jogo de xadrez abrange a sedução e o estupro. À maldição da terra no mito segue-se a violação das donzelas na Corte do Rei-Pescador. Luxúria sem amor. Cf. também as “Filhas do Tâmisa” (estas aparecerão na parte III, acrescento eu- DvE). Na peça de Thomas Middleton (1580-1627), citada por Eliot em sua nota ao v. 138 (“Women beware Women”), o jogo de xadrez é usado para distrair a atenção de uma senhora, facilitando desse modo o processo de sedução de sua enteada (97). Outra fonte afirma que nessa peça de Middleton “uma partida de xadrez no palco evolui paralelamente à sedução cínica no cômodo ao lado” (98).
O jogo de xadrez assim está associado aqui a um objetivo utilitário, de natureza vil e antiética. Mas quanto ao casal da elite, serve para preencher o vazio de sua existência, como dissemos. A mulher afirma que poderão jogar “uma partida de xadrez/ Comprimindo os olhos sem pálpebras/ E esperando uma batida na porta” ( And we shall play a game of chess,/ Pressing lidless eyes and waiting for a knock upon the door- vv. 137-8). A tradução literal de “lidless eyes” é mais expressiva que “olhos insones” pois sugere o caráter de pesadelo ou sombrio da vida deles.
A questão do sexo sem amor na Terra Desolada é apontada aqui pela referência à lenda de Filomela, tema do quadro sobre a lareira da sala que mostra a transformação pelos deuses dessa personagem da mitologia clássica em um rouxinol. Ela fora violentada pelo cunhado Tereus, rei da Trácia, casado com sua irmã Procne. Tereus, depois, ainda lhe cortou a língua, para que não o denunciasse, conforme o relato de Ovídio. O episódio ainda será lembrado no final do poema (v. 428).
O canto de pássaros, segundo Southam (99), era representado, na poesia elisabetana, por “jug jug”. Na Terra Desolada, contudo, isso é interpretado de forma rude e zombeteira como uma alusão ao intercurso sexual (essa informação permite melhor compreender o v. 103-“Tchãc tchãc” para os ouvidos imundos” (“Jug jug” to dirty ears). Mas se o canto do rouxinol, o “jug jug” de Filomela, ainda é ouvido no panorama desolador dessa Terra, é sinal de que persiste aí a esperança de mudança...
No verso seguinte, v. 104, entra em cena o interlocutor da dama, supostamente seu marido (100).
A partida de xadrez decorre da necessidade, do casal da classe alta, de preencher o vazio da vida que leva. A dama começa a falar a partir do v.111, revelando toda a sua ansiedade e falta de comunicação com o marido, queixando-se de que ele se fecha em si e nunca fala com ela. A ansiedade da mulher é bem revelada na manifestação abaixo:
“What shall I do now? What shall I do?
I shall rush out as I am, and walk the street
With my hair down, so. What shall we do tomorrow?
What shall we ever do?” (vv.131-4)
(“Que farei agora? Que farei?/ Sairei apressada assim como estou, e andarei na rua/ Com meus cabelos desatados. Que faremos amanhã?/ Que faremos algum outro dia?”)
São palavras que expressam bem a falta de perspectivas de sua vida ociosa cuja ousadia máxima, para a mulher, seria sair à rua sem se arrumar, sair do jeito que está em casa...
A mulher, por estar ansiosa, faz repetidas perguntas ao marido. Quando lhe pergunta “Em que estás pensando?” (What are you thinking of? /.../- v.113), ele responde assim:
I think we are in rat’s alley
Where the dead men lost their bones. (vv.115-6)
(Penso que estamos no beco dos ratos/ Onde os mortos perderam seus ossos).
Em sua nota ao v. 115, Eliot também nos remete para o v. 195, da parte III, onde menciona o rato novamente: “no sótão um tanto baixo e seco” ( /.../ in a little low dry garret) (sugerindo um caixão?), ouve-se, além dos ossos aí atirados, o som como de chocalho que os pés dos ratos produzem, ano após ano ( Rattled by the rat’s foot only, year to year- v.195). Esses versos têm o mesmo caráter da resposta aqui do marido, uma sintética caracterização da “Terra Desolada”. Para Serpieri, os vv. 115-6 são o núcleo simbólico do poemeto (101). Certamente por bem representarem o caráter sombrio dessa Terra, de negação da vida, associado portanto à morte, sugestão que é reforçada pelo v. 125-- “Essas são as pérolas que foram seus olhos” (Those are pearls that were his eyes), repetição do v. 48, relativo à descição de um morto, no caso, o pai de Ferdinand, personagem de “A Tempestade”, de Shakespeare.
Por outro lado, na confusa nota ao v. 126--“Estás vivo, ou não? Não há nada em tua cabeça?” (Are you alive, or not? Is there nothing in your head?), Eliot nos remete ao vv. 37 e 48 da parte I. O v. 37 refere-se à saída do casal de namorados do jardim dos jacintos, e às condições psicológicas alteradas do protagonista nessa ocasião, pois afirma-- “Não estava vivo nem morto” (/.../ I was neither/ Living nor death /.../- vv.39-40) (o v. 48 relaciona-se ao v. 125, e não ao v. 126). Por que as condições do protagonista se alteraram? Por experimentar o primeiro orgasmo, a experiência sensorial máxima dos seres humanos? Assim, a observação da mulher sobre o marido é relacionada por Eliot ao personagem masculino que saía do jardim dos jacintos nem vivo nem morto, por onde se deduz que a mulher poderia ser aquela “moça dos jacintos” (the hyacinth girl- v.36) do passado, anterior à situação atual, de relação desgastada entre os membros do casal, como já foi dito.
No “diálogo”, quando o marido fala que “estamos no beco dos ratos”, obviamente o “nós” não se refere apenas ao casal mas a todos os habitantes da Terra Desolada, de ausência de comunicação entre os seres humanos e de relações frustradas entre eles, que não vivem a sua vida verdadeiramente.
Ao fim dessa primeira secção, o v. 128 refere-se a “That Shakespeherian Rag” que, segundo Southam (102), era um sucesso musical americano em 1912. Serpieri (103) afirma que “rag” está por “ragtime”, um tipo de jazz muito popular na início da I Guerra. Para esse autor, o diálogo-monólogo com Shakespeare na primeira seção da parte II (cf sua presença nos versos) se rompe e Shakespeare se torna um ritmo sincopado, parodístico. Daí provêm o “O O O O” e a sílaba extra de “Shakespeherian” que observamos no v. 128. Todavia, Faria, em sua tradução do poema (104) adota o termo “farrapo” para traduzir “rag”, outra possibilidade, considerando a citação anterior do verso de Shakespeare (v. 125). Wilkie e Hurt informam que todos os vv. 128-31 foram extraídos da canção popular “That Shakespearian Rag” de 1912 (105).
Os versos 111-138 consistem no diálogo entre os membros de um casal que não se comunica. Serpieri (106) o compara a uma partida de xadrez simbólica. O suposto marido, para esse autor, “é o protótipo dos homens vazios” (cf. Are you alive or not?- v. 126). As respostas dele às manifestações ansiosas da mulher, irritada com sua atitude introspectiva, refletem todo o seu pessimismo quanto à Terra Desolada, que ele associa a um beco de ratos e aos ossos dos mortos (vv. 115-6), ou seja, à morte e à espera passiva dela. Serpieri identifica nessa passagem três eixos temporais nas respostas do interlocutor: o presente de desolação (vv.115-6); o passado de uma metamorfose impossível (vv.125-6) e o futuro de alienação que se estende indefinidamente (vv.135-8).
Na primeira seção da parte II, conforme suas notas, Eliot cita Shakespeare (paródia de uma passagem de “Antônio e Cleópatra”), Virgílio (a propósito das características do teto da sala), Milton (a cena silvestre), Ovídio (quanto à lenda de Filomela), John Webster (o vento na porta, explicação do barulho que incomoda a dama da elite) e Middleton (a partida de xadrez). Ele incorpora ou parodia em seu poema os versos desses autores, indicando assim que pertence a uma tradição cultural. Reconhece sua dívida para com ela mas ao mesmo tempo busca novos caminhos, o que o levará a revolucionar a poesia. A citação ou a paródia dos versos desses autores, e outros, será um procedimento usado ao longo de todo o poema.
A segunda seção da parte II, v. 139 em diante, refere-se a um outro ambiente social, próprio do proletariado. Reproduz a conversa entre duas amigas sobre Lil e seu marido. Elas conversam num “pub” e empregam uma linguagem popular e mesmo incorreta. Essa conversa é interrompida por uma frase, repetida cinco vezes: “Apressem-se por favor está na hora”(Hurry up please its time- vv. 141,152,165,168 e 169), tipicamente usada, segundo os comentadores, pelos donos desses bares na Inglaterra para anunciar a hora de fechar.
Depreende-se que Lil é esposa de Albert, o qual está retornando para casa, depois de passar quatro anos no exército. A reprodução da conversa no bar reflete bem as características da vida das camadas populares na Terra Desolada. Inicialmente, deve-se dizer que a ação se situa num bar, local que os assalariados procuram para se descontrair, após um duro dia de dia de trabalho.
Albert acabou de dar baixa. Sua mulher, Lil, já teve cinco filhos, e ainda fez aborto, o que explicaria a sua aparência precocemente envelhecida. Cabe aqui a comparação com o casal (sem filhos?) da primeira seção, cujo cenário não é um “pub” mas o “boudoir” e a sala requintada da sua residência. Enquanto a preocupação da mulher aí é o que fazer, como preencher seu vazio, a preocupação feminina, no segundo caso, é como manter o marido, como manter uma vida familiar difícil, sobretudo para a mulher, em que seu papel é evidentemente subordinado, destinado a proporcionar uma vida satisfatória (a good time- v. 148) para o marido, vale dizer, satisfatória em termos sexuais. Para isso, deverá cuidar dos dentes e da aparência.
Mas Lil está cansada desse papel de procriadora e amante, além naturalmente de responsável pelo trabalho doméstico, e quando lhe dizem que Albert poderá ter outra mulher, que lhe proporcionará essa vida boa, ela responde assim: “Então saberei a quem agradecer, ela disse, lançando-me um olhar direto” (Then I”ll know who to thank, she said, and give me a straight look- v. 151).
Todavia, ela está preocupada com a possibilidade de ser abandonada por Albert, pois tem uma expressão de desânimo quando a amiga lhe diz que devia envergonhar-se de aparentar mais idade do que a que tem realmente. Ela então se queixa, dizendo que não pode impedir isso, atribuindo-o às pílulas para abortar.
A cena se encerra com um jantar para Albert, quando de seu retorno, onde tudo aparentemente está bem, e a felicidade da vida familiar, assegurada. Mas Eliot parece nos dizer que as pessoas na Terra Desolada, independentemente da classe social a que pertençam, não estão bem, os casais estão unidos mas não estão felizes, a condição humana é precária, e isso vale tanto para o rico quanto para o pobre, embora aparentemente as possibilidades de renovação vital sejam mais promissoras no casal pobre, dada a elevada fertilidade da esposa, o que contrasta com a esterilidade dessa Terra...
Note-se que também aqui há referência a um jogo, embora apenas sugerida (“gamão”). Mas no caso “gammon” (v. 166) refere-se ao prato a ser servido, que traduzi por “pernil”. Todavia, o sentido mais preciso do termo “gammon” é “a parte inferior de manta de toucinho defumado (bacon) incluindo a pata traseira do animal”, conforme o dicionário Houaiss (107).
A frase “Apressem-se por favor está na hora” (frase só dita em estabelecimentos populares, não naqueles frequentados pelo casal rico) é repetida cinco vezes, em letras maiúsculas. Além do significado prosaico já referido, vale também como um alerta existencial para todos nós, moradores da Terra Desolada. Expressa a urgência de que redirecionemos nossas vidas no sentido de lhe dar sentido, longe da presente futilidade, renascendo para uma outra vida, eticamente superior. Uma vida orientada por valores humanistas, que não prevaleciam na época da elaboração do poema (1922, no pós-Primeira Guerra) e não prevalecem hoje, uma das razões da atualidade do poema.
A parte II consiste essencialmente, como se viu, em dois diálogos, um mantido no “boudoir”/sala de estar de uma residência de gente rica e outro num “pub”, em que se revela a natureza do relacionamento de dois casais. Assim, esse é o tema central da parte II, o da “solidão a dois” na Terra Desolada, ou a três, a quatro, a n, se considerarmos a superficialidade nela dos relacionamentos interpessoais...
As falas da mulher da classe alta revelam bem a falta de comunicação que existe entre ela e seu parceiro. Por ser um diálogo típico de casais, mostra também como é “típica”, como é “normal”, a falta de comunicação na Terra Desolada.
Por outro lado, a mulher da classe baixa, Lil, também está só, já não tem uma aparência sedutora, receia perder o marido. Seus dentes estão estragados, e a solução seria um par de dentaduras, comprada com o dinheiro que Albert lhe deixou para isso, mas que não foi usado para tanto (teria sido usado para custear o aborto aí referido, possível consequência de uma relação extraconjugal?). Assim, o dinheiro para os pobres é a saída para resolver os seus problemas, saída essa falaciosa, na visão de mundo filosoficamente idealista (e questionável) de Eliot, que mostra idêntica frustração no relacionamento do casal rico...
A parte II se encerra com dois versos semelhantes na estrutura, mas com um caráter distinto: o primeiro deles, com vários boas noites de despedida, na forma coloquial (goonight), menciona algumas pessoas (Bill, Lou e May), possíveis participantes de uma festa em que o casal da primeira seção teria comparecido, ou de conhecidos das duas amigas no “pub”. O último verso, mais formal, é, na realidade, de acordo com os autores consultados, mais uma das múltiplas citações não-atribuídas por Eliot em suas notas, no caso de “Hamlet” (Shakespeare mais uma vez!). Consiste em palavras ditas por Ofélia, pouco antes de se suicidar, buscando a “morte pela água”: “Good night, ladies, good night, sweet ladies, good night, good night”- v. 172, o que também ocorrerá, mas não por vontade dele, com Flebas, o Fenício, tema da parte IV.
Para concluir este tópico relativo à parte II, algumas observações complementares, mais relacionadas ao aspecto formal. Todos os sentidos são aqui evocados: 1) a visão, pela descrição detalhada da sala, como uma tela de pintura, mencionando-se sua composição, a incidência da luz, as cores dos objetos e suas características; 2) o olfato, pela referência aos perfumes, v. 87; 3) o paladar pela referência ao pernil, no final, v. 166, e ao “pub”, onde se bebe, ambiente da segunda cena; 4) a audição, pela sonoridade dos versos em si e por certas passagens onomatopaicas, como “jug jug” (v. 103) e “ta ta” (v. 171) e, por fim, 5) o tato, pela descrição pormenorizada e sugestiva dos objetos da sala, como por exemplo, a dos pedestais do espelho, “lavrados de vinhas carregadas” (/.../ wrought with fruited vines- v. 79), do “teto em caixotões” (coffered ceiling- v.93), do “golfinho entalhado” (carved dolphin- v.96) etc
Uma referência especial deve ser feita à presença da cor, nesta parte do poema: inicialmente, evoca-se, no ambiente da classe social elevada, um jogo de xadrez (com suas pedras de marfim e ébano?). O marfim é citado explicitamente no v. 86, quando se mencionam “frascos de marfim e vidro colorido” (/.../ vials of ivory and coloured glass). O mármore também é mencionado no v.78. O vermelho está presente na luz das velas dos candelabros e a cor da uva é sugerido pelas “vinhas carregadas” (v. 79). À luz das velas se junta “o brilho das jóias dela” (The glitter of her jewels /.../- v. 84), emanado de estojos de cetim. Diversas cores (não especificadas) são apontadas não só em “vidros coloridos” também em “pedras coloridas” (coloured stone- v. 95) e implícitas nos quadros existentes na sala (v.104). Também se menciona o brilho “verde e laranja” (green and orange- v.95) do cobre que impregna as toras de navio recolhidas do mar, um Cupido “dourado” (golden- v. 80) e uma “cena silvestre” (sylvan scene- v. 98), logo verde. Nos dois “diálogos” desses habitantes da Terra Desolada não há menção explícita à cor, refletindo o desânimo, a falta de vida de uma relação desgastada dos casais que aí vivem. Apenas, no primeiro deles, há um par de versos em que ocorre um contraste marcante entre a cor dos ratos e a dos ossos (v. 115-116), e também uma menção a “pérolas” (v. 125). No segundo diálogo, mencionam-se “dentes”. Em todos esses casos, a cor característica é subliminarmente evocada.
Por outro lado, deve-se salientar que, em contraste à descrição de um cenário requintado no início da parte II, ocorrem referências prosaicas ou grotescas no segundo diálogo: referências a dinheiro (v. 143), a dentes (v. 144) e dentadura (v. 145), a aborto (v. 159) e a comida (v. 166). Aliás, com relação àquele primeiro cenário, Cupido é referido como “Cupidon”, em francês, uma sugestão a mais destinada a acentuar o requinte do ambiente.
Os versos da parte II não são rimados, nem mesmo ocasionalmente, como em outras passagens.
Deve-se mencionar, ainda, a presença da água na parte II, mas de forma utilitária, não como símbolo de vida. Ela é referida nos versos 135-6 -- “Água quente às dez./ E se chover, um carro fechado às quatro” (The hot water at ten./ And it if rains, a closed car at four), está presente na referência às “toras de navio” (sea-wood- v. 94) da decoração, e implicitamente no último verso dessa parte II (v. 172), uma citação de “Hamlet” contendo as palavras de despedida de Ofélia antes de sua morte por afogamento. Como se sabe, a água tem um papel importante no poema. Lembremo-nos de que ela já estava presente na parte I, quando Marie é surpreendida pela chuvarada de verão e pela referência à carta do Marinheiro Fenício afogado. A água, de acordo com a tradição mítica, é considerada sinônimo de vida, pois é através dela que a vida na natureza se renova. Por outro lado, a água se contrapõe ao fogo, que será o símbolo referencial básico da parte III, a seguir comentada.
Por fim, salientem-se algumas particularidades na linguagem da segunda seção: o uso, no v.139, de um termo de gíria— “demobbed” por “demobilized” (= “desmobilizado”)--- como assinalam Wilkie e Hurt (op. cit., p. 1878, nota 37), e também expressões de caráter popular e gramaticalmente incorretas como “there’s others” (v. 149) e “It’s them pills I took” (v.159), que a nossa tradução não reproduz. Saliente-se ademais outra dificuldade nesse campo, que diz respeito à expressão “lidless eyes” (v. 138), traduzida por “olhos sem pálpebras”, mas comportando também “olhos com as pálpebras abertas” ou “olhos insones”, perdendo-se assim aqui o duplo sentido do original. A expressão lembra o v.125 (repetição do v.48), que é uma outra citação de Shakespeare-- “Those are pearls that were his eyes”, afirmação feita a propósito de um cadáver. Mas os personagens da parte II, e da Terra Desolada, não estão inteiramente mortos. Eles são, na realidade, “mortos vivos”...
Comments
Post a Comment